NOTÍCIAS

Justiça só para quem pode pagar?

Foto: Arquivo/Agência Brasil

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

A corrente impetuosa é chamada de violenta.
Mas o leito do rio que a contém
Ninguém chama de violento.
A tempestade que faz dobrar as bétulas
É tida como violenta;
E a tempestade que faz dobrar
Os dorsos dos operários na rua? (Bertolt Brecht- Sobre a violência”)

1 Na sessão do dia 14, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.766, iniciado em 2018, que visa à declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com a redação dada pela Lei N. 13.467/2017, contidos nos Arts. 790-B, 791-A e 844, § 2º, que assim dispõem:

“Art. 790-B. A responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais é da parte sucumbente na pretensão objeto da perícia, ainda que beneficiária da justiça gratuita.

§ 4º Somente no caso em que o beneficiário da justiça gratuita não tenha obtido em juízo créditos capazes de suportar a despesa referida no caput, ainda que em outro processo, a União responderá pelo encargo.” (NR)

Art. 791-A. Ao advogado, ainda que atue em causa própria, serão devidos honorários de sucumbência, fixados entre o mínimo de 5% ([…]) e o máximo de 15% ([…]) sobre o valor que resultar da liquidação da sentença, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa. […]

§ 4º Vencido o beneficiário da justiça gratuita, desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário.

Art. 844.

§2º Na hipótese de ausência do reclamante, este será condenado ao pagamento das custas calculadas na forma do art. 789 desta Consolidação, ainda que beneficiário da justiça gratuita, salvo se comprovar, no prazo de quinze dias, que a ausência ocorreu por motivo legalmente justificável.”

2 Como dito, aos 10 de maio de 2018, o ministro relator Roberto Barroso propôs, em seu voto, a seguinte ementa do julgamento:

“Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E DO TRABALHO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ACESSO À JUSTIÇA. GRATUIDADE DE JUSTIÇA. MÍNIMO EXISTENCIAL. INCONSTITUCIONALIDADE PARCIAL. 1. A Reforma Trabalhista assegurou o direito à gratuidade de justiça aos trabalhadores hipossuficientes, mas determinou: (i) a cobrança de honorários de advogado e de honorários periciais, em caso de sucumbência (CLT, arts. 791-A e 790-B); (ii) a utilização de créditos havidos em outros processos para fazer face a tais honorários (CLT, art. 791-A, §4º); (iii) a cobrança de custas judiciais aos empregados que derem causa ao arquivamento de suas ações por não comparecimento injustificado à audiência (CLT, art. 844, §2º). 2. As normas processuais podem e devem criar uma estrutura de incentivos e desincentivos que seja compatível com os limites de litigiosidade que a sociedade comporta. O descasamento entre o custo individual de postular em juízo e o custo social da litigância faz com que o volume de ações siga uma lógica contrária ao interesse público. A sobreutilização do Judiciário congestiona o serviço, compromete a celeridade e a qualidade da prestação da tutela jurisdicional, incentiva demandas oportunistas e prejudica a efetividade e a credibilidade das instituições judiciais. Vale dizer: afeta, em última análise, o próprio direito constitucional de acesso à Justiça. 3. Dessa forma, é constitucional a cobrança de honorários sucumbenciais dos beneficiários da gratuidade de justiça, como mecanismo legítimo de desincentivo ao ajuizamento de demandas ou de pedidos aventureiros. A gratuidade continua a ser assegurada pela não cobrança antecipada de qualquer importância como condição para litigar. O pleito de parcelas indevidas ensejará, contudo, o custeio de honorários ao final, com utilização de créditos havidos no próprio feito ou em outros processos. Razoabilidade e proporcionalidade da exigência. 4. Todavia, em resguardo de valores alimentares e do mínimo existencial, a utilização de créditos havidos em outros processos observará os seguintes critérios: (i) não exceder a 30% do valor líquido recebido (por aplicação analógica das normas que dispõem sobre desconto em verbas alimentares: Lei 8.213/1991, art. 115, incs. II e VI; Decreto 3.048/1999, art. 154, § 3º; e Decreto 8.690/2016, art. 5º); e (ii) não incidir sobre valores inferiores ao teto do Regime Geral da Previdência Social (atualmente R$ 5.645,80). 5. Também é constitucional a cobrança de custas judiciais dos beneficiários da justiça gratuita que derem ensejo ao arquivamento do feito, em razão do não comparecimento injustificado à audiência. Respeito e consideração à Justiça e à sociedade, que a subsidia. Ônus que pode ser evitado pela apresentação de justificativa para a ausência. 6. Por fim, é igualmente constitucional o condicionamento da propositura de nova ação ao pagamento das custas judiciais decorrentes do arquivamento. Medida adequada a promover o objetivo de acesso responsável à Justiça. 7. Interpretação conforme a Constituição dos dispositivos impugnados para assentar, como teses de julgamento: “1. O direito à gratuidade de justiça pode ser regulado de forma a desincentivar a litigância abusiva, inclusive por meio da cobrança de custas e de honorários a seus beneficiários. 2. A cobrança de honorários sucumbenciais poderá incidir: (i) sobre verbas não alimentares, a exemplo de indenizações por danos morais, em sua integralidade; (ii) sobre o percentual de até 30% do valor que exceder ao teto do Regime Geral de Previdência Social, quando pertinentes a verbas remuneratórias. 3. É legítima a cobrança de custas judiciais, em razão da ausência do reclamante à audiência, mediante sua prévia intimação pessoal para que tenha a oportunidade de justificar o não comparecimento”.

3 Àquela oportunidade, o ministro Edson Fachin, em judicioso voto, divergiu do relator, votando pela total procedência dos pedidos contidos na ADI, para declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos legais impugnados.

De seu voto, extraem-se, dentre outros, os seguintes excertos:

“[..]

A ação submetida à análise desta Suprema Corte aduz a inconstitucionalidade de restrições impostas ao direito fundamental à gratuidade e, por consequência, ao acesso à Justiça, perante a jurisdição trabalhista. Para avaliar se as restrições impostas afrontam, ou não, as normas constitucionais indigitadas, bem como se constituem restrições inconstitucionais aos próprios direitos fundamentais à gratuidade e ao acesso à Justiça, torna-se necessário partir da literalidade das garantias fundamentais em discussão: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (…) LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.

[..]
A desigualdade social gerada pelas dificuldades de acesso isonômico à educação, mercado de trabalho, saúde, dentre outros direitos de cunho econômico, social e cultural, impõe que seja reforçado o âmbito de proteção do direito que garante outros direitos, especialmente a isonomia. A restrição, no âmbito trabalhista, das situações em que o trabalhador terá acesso aos benefícios da gratuidade da justiça, pode conter em si a aniquilação do único caminho de que dispõem esses cidadãos para verem garantidos seus direitos sociais trabalhistas.

[..]
É preciso restabelecer a integralidade do direito fundamental de acesso gratuito à Justiça Trabalhista, especialmente pelo fato de que, sem a possibilidade do seu pleno exercício por parte dos trabalhadores, é muito provável que estes cidadãos não reúnam as condições mínimas necessárias para reivindicar seus direitos perante esta Justiça Especializada.

[..]
O direito fundamental à gratuidade da Justiça encontra-se amparado em elementos fundamentais da identidade da Constituição de 1988, dentre eles aqueles que visam a conformar e concretizar os fundamentos da República relacionados à cidadania (art. 1º, III, da CRFB), da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB), bem como os objetivos fundamentais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I , da CRFB) e de erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais (art. 3º, III, da CRFB). Apresenta-se relevante, nesse contexto, aqui dizer expressamente que a gratuidade da Justiça, especialmente no âmbito da Justiça Laboral, concretiza uma paridade de condições, propiciando às partes em litígio as mesmas possibilidades e chances de atuarem e estarem sujeitas a uma igualdade de situações processuais. É a conformação específica do princípio da isonomia no âmbito do devido processo legal.

As limitações impostas pela Lei 13.467/2017 afrontam a consecução dos objetivos e desnaturam os fundamentos da Constituição da República de 1988, pois esvaziam direitos fundamentais essenciais dos trabalhadores, exatamente, no âmbito das garantias institucionais necessárias para que lhes seja franqueado o acesso à Justiça, propulsor da busca de seus direitos fundamentais sociais, especialmente os trabalhistas. Assim sendo, o pedido da presente ação direta de inconstitucionalidade deve ser julgado procedente. É como voto”.

4 Após o voto do ministro Fachin, o ministro Luiz Fux pediu vistas do processo, ainda na sessão de 10/5/2018; passados 3 anos e 5 meses, proferiu seu voto-vista, que acompanha integralmente o voto do relator ministro Roberto Barroso.

O voto do ministro Luiz Fux mostra-se repleto de sofismas, meias verdades, proposital silêncio sobre os dados estatísticos produzidos pelo Tribunal Superior do Trabalho( TST)- Relatório Geral, relativos aos anos bases de 2017 e 2020-, que infirmam sua argumentação, e, ainda, de total desprezo pelos valores sociais do trabalho ( quarto fundamento da República, Art. 1º, IV, da CF), e pelo seu primado (Art. 193, da CF).

5 Se alguém pouco afeto à realidade brasileira buscar conhecê-la a partir do voto ministro Luiz Fux, com toda certeza, não terá êxito em sua empreitada; terá, isto sim, visão totalmente distorcida e enviesada sobre o que é real e o que é fantasioso, sendo induzido a acreditar que, por aqui, os trabalhadores são algozes das empresas, contra elas litigando a esmo e, em grande medida, de forma frívola (palavra do relator); e que, por isso, faz-se necessário impor-lhes limites pragmáticos, de modo a impedir sua frivolidade, o que, constitucionalmente- palavra do relator), fazem os dispositivos legais impugnados.

6 A Revista Eletrônica Conjur, ainda no dia 14 de outubro, em artigo assinado por Sérgio Rodas, extraiu do comentado voto-vista, dentre outros:

“ Em voto-vista antecipado, Luiz Fux apontou que a gratuidade de justiça não é um fim em si mesmo, mas um meio de assegurar o acesso à justiça. E tal garantia deve ser usada de forma razoável, destacou o ministro, criticando ações temerárias e medidas para estender a duração dos processos, como pedidos de perícia feitos sem fundamentação e recursos sem o risco de, em caso de derrota, ter que pagar custas.

Na visão de Fux, a reforma trabalhista, ao exigir o pagamento de custas e honorários de sucumbência dos trabalhadores que perderem os litígios, estabeleceu um acesso responsável à Justiça. Com isso, gerou a queda de ações trabalhistas, aumentando a eficiência da Justiça do Trabalho, declarou o presidente do Supremo”.

7 Não por mero esquecimento, o ministro relator, Roberto Barroso, e o ministro Luiz Fux, em seu voto-vista, sequer fizeram um único comentário que fosse sobre o rentável e antissocial negócio de deliberado descumprimento de direitos trabalhistas, o que, efetivamente, justifica o grande número de litígios trabalhistas. Isso, eles propositadamente omitem, como que a dar razão ao brado do poeta alemão Bertolt Brecht, que se encontra na epigrafe desse texto.

Igualmente, silenciam-se sobre o total de processos trabalhistas pendentes de execução, ou seja, que só aguardam a satisfação dos créditos neles contidos; segundo o já comentado Relatório Geral de 2020, havia 2.927.996, sendo que, dentre eles, 943.860 achavam-se em arquivo provisório, porque não foram encontrados meios e modos capazes de viabilizar a satisfação dos créditos.

Em 2017, ano de aprovação e de início de vigência da Lei N. 13467, o quadro era o seguinte, segundo Relatório Geral daquele ano, em palavras e números literais:

“Os processos pendentes de execução fecharam o ano em 1.847.878, quantitativo 7,5% superior ao do ano anterior. Além dos processos pendentes de execução, ficaram em arquivo provisório, 826.785 processos, 34,3% a mais que em 2016”.

O confronto dos números relativos aos anos de 2017 e 2020, forçosamente, conduz à inevitável questão: a quem a reforma trabalhista beneficiou? Aos trabalhadores, só trouxe prejuízos; os números não deixam dúvidas: em 2017, o número de ações em arquivo provisório era de 826.785 e, em 2020, de 943.860; isto é, 14% a mais do que naquele ano.

Para os dois ministros, só importa o número de litígios, não sendo relevante as causas que o ensejam nem prejuízos que impostos aos trabalhadores, seja pela restrição ao acesso à justiça, seja pela impossibilidade de ter seus créditos satisfeitos, como mostram os dados do parágrafo anterior.

8 Consoante, ainda, o realçado Relatório Geral de 2020, nesse ano, foram ajuizadas 1.463.481 novas ações (reclamações), sobressaindo como assuntos mais recorrentes aviso prévio, com 394.802 reclamações, multa de 40% do FGTS, com 332.802 reclamações, e multa pelo atraso no pagamento das verbas rescisórias (Art. 477, § 8º, da CLT), 326.110 reclamações.

9 Para que se possa avaliar a realidade dos processos trabalhistas, antes e depois da reforma trabalhista, vale a pena fazer o cotejo entre os relatórios de 2017 e 2021.

Eis os números, em resumo:

Em 2017, foram conciliados e julgados 2.744.280 ações trabalhistas; sendo conciliadas: 798.984 (36,5%), de rito ordinário e 127.812 (46,7%), sumaríssimo; julgados totalmente procedentes: 50.581 (2,4%), de rito ordinário, e 11.256 (1,7%), sumaríssimo; procedentes em parte: 708.984 (33,9%), de rito ordinário; e 127.812 (19,6%), sumaríssimo; improcedentes: 199.462 (9,5%), de rito ordinário e 38.323 (5,9%), sumaríssimo; e arquivadas, desistidas e extintas: 369.199 (17,6%), de rito ordinário e 169.985 (26,1%), sumaríssimo.

Em 2021, foram conciliados 1.260.331 ações trabalhistas; sendo conciliadas; 255.779 (34,3%), de rito ordinário e 254.271 (49,5%), sumaríssimo; julgadas totalmente procedentes: 79.210 (10,6%), de rito ordinário, e 33.113 (6,4%), sumaríssimo; procedentes em parte: 229.499 (30,7%), de rito ordinário; e 110.730 (21,6%), sumaríssimo; improcedentes: 85.372 (11,4%), de rito ordinário e 34.737 (6,8%), sumaríssimo; e arquivadas, desistidas e extintas: 96.299 (12,9%), de rito ordinário e 80.732 (15,7%), sumaríssimo.

10 O julgamento da comentada ADI terá prosseguimento na próxima quarta-feira, dia 20 de outubro; faltando votar Nunes Marques, Alexandre Moraes, Rosa Weber, Dias Toffoli, Carmen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.

Com o placar de 2 a 1 pela constitucionalidade dos dispositivos impugnados, a perspectiva dos trabalhadores não é nada alvissareira.

Ao que tudo indica, o STF manterá sua cruzada de algoz dos direitos fundamentais sociais, como tem sido, ao menos, desde 2015.

*Por José Geraldo de Santana Oliveira consultor jurídico da Contee