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Cicatrizes da pandemia: os novos pobres

Foto: Reprodução/Ponte

No longo ano e meio de convivência com a Covid-19, a classe média perdeu a qualidade de vida e o bem-estar conquistados com anos de sacrifício. As mulheres se sobrecarregaram de trabalho e foram violadas no confinamento; a saúde mental se deteriorou; pacientes sem Covid foram vítimas dos fechamentos prolongados e prematuros de serviços de saúde, e trabalhadores tiveram que descobrir como manter a renda após as demissões. Este especial colaborativo, produzido por uma equipe de jornalistas de nove países e sete veículos de comunicação, reconstrói histórias marcadas pelo sofrimento a partir de depoimentos das principais cidades sul-americanas.

Em menos de três meses, Marco Navarro trocou a direção de uma agência de comunicação e publicidade pela criação de galinhas e plantio de verduras no quintal de sua casa, na cidade equatoriana de Cuenca, para pagar a hipoteca da casa, a escola particular dos filhos e a manutenção do espaço. Também passou a sofrer episódios recorrentes de insônia, embora não saiba se são resultado de preocupações econômicas com a falência da empresa ou uma consequência da Covid que afetou sua família.

A pandemia apagou a bonança dos anos anteriores, que lhe permitiu comprar financiada a casa dos seus sonhos, com um grande espaço para as crianças brincarem, um pequeno jardim e árvores frutíferas. Com a crise, teve que eliminar do orçamento viagens de férias, roupas novas, brinquedos, academia e conserto do carro. O carrinho do mercado ficou mais leve; já não leva doces ou produtos que não sejam essenciais. Mas, aproveitando o tamanho do terreno, Marco e Carmen, sua esposa, montaram a horta e o galinheiro. Ainda que não sobre nada, ele diz que “pelo menos não falta comida”. Agora está recomeçando em um emprego que conseguiu, depois de um ano, mas ainda dorme mal. As feridas deixadas pela crise ainda estão abertas e falta tempo para cicatrizar.

Não há dúvida de que a Covid atingiu principalmente os mais pobres, mas também é verdade — e pouco se fala a respeito — que a crise social e econômica trazida pela pandemia provocou uma queda sem precedentes na qualidade de vida e no bem-estar das classes médias latino-americanas. Várias entidades já haviam registrado uma estagnação dos avanços socioeconômicos nos últimos cinco anos. Mas a pandemia acelerou a deterioração ao ponto de o Banco Mundial estimar que, durante o primeiro ano, os países retrocederam duas décadas em redução da pobreza e equidade. Os dados do banco apontam que, entre 2019 e 2020, a classe média encolheu entre 38,4% e 37,3%, uma diminuição que contrasta com 2018, quando pela primeira vez o número de famílias nessa faixa ultrapassou o de famílias em situação de pobreza ou vulnerabilidade.

Descrever a classe média é complexo. É um leque amplo onde cabem tanto trabalhadores qualificados que ganham salários próximos ao mínimo decretado em seus países, que não passam fome, têm teto e serviços básicos, como profissionais abastados com acesso a empréstimos bancários, planos de saúde, possibilidade de viagem e capacidade de economizar. O Banco Mundial situa na classe média quem ganha entre 13 e 70 dólares por dia.

Essa faixa de rendas heterogêneas é um importante suporte para a economia: contribui com mão de obra para o sistema produtivo, paga impostos e, sobretudo, sustenta e estimula o consumo graças à sua capacidade de gasto. Por isso, qualquer prejuízo no campo econômico e o fechamento de empresas — que pode chegar a 20%, segundo estimativa da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) — repercutem em lares como o da família Navarro. A queda de sua renda ameaça aumentar o fosso da desigualdade e a precarização do emprego.

A classe média também é um indicador de avanços na equidade e no exercício dos direitos humanos. Na medida em que as pessoas se consolidam nesse segmento da pirâmide socioeconômica, elas têm mais escolaridade, maiores possibilidades de decidir e ter empregos qualificados. Assim, contribuem para passar de sociedades baseadas na produção de bens primários, em indústrias extrativas, com pouca qualificação da mão-de-obra, para sociedades baseadas no conhecimento.

Ainda que a pandemia tenha afetado todos os estratos sociais, a situação da classe média também é difícil. Por se situarem no centro, seus membros não são tão pobres a ponto de receber ajuda direta — especialmente transferências de dinheiro ou subsídios para serviços públicos. Muitos tampouco são tão ricos ou estão inscritos no setor formal da economia para se qualificarem a serem alvo de medidas de apoio a micro, pequenas, médias e grandes empresas. Na verdade, 54,4% de seus trabalhadores são informais, de acordo com o Banco Mundial. Isso significa que, em caso de calamidade, em muitos países eles não recebem seguro desemprego nem recursos previdenciários. A economia dura apenas alguns meses. Eles devem fazer malabarismos para sobreviver.

Uma equipe jornalística regional de nove países e sete veículos de comunicação preparou um especial colaborativo que testemunha como milhões de pessoas de classe média se adaptaram às realidades impostas pelas severas quarentenas do início da pandemia e pelas restrições posteriores. Em alguns casos, as histórias refletem a mudança dessas pessoas para as estatísticas onde se encontram os mais vulneráveis. Os novos pobres da região.

Tanto as projeções do Banco Mundial como as da Cepal concordam que, durante o primeiro ano da pandemia, quase 22 milhões de latino-americanos deixaram de ser classe média e se tornaram vulneráveis ou, definitivamente, pobres. No entanto, o Banco Mundial especifica que, ao mesmo tempo, 17 milhões de pessoas chegaram às camadas médias, principalmente devido ao programa de transferências maciças e temporárias do governo do Brasil. Ou seja, em 2020 a queda líquida foi de 4,7 milhões de indivíduos.

Essa mobilidade social decrescente se deve em grande parte à perda de empregos que, segundo cálculos da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2020 afetou 26 milhões de pessoas na América Latina e no Caribe. Outros viram sua renda cair porque suas condições de trabalho mudaram ou passaram do setor formal para o informal e, por exemplo, passaram a trabalhar por conta própria.

No início de 2021, pela primeira vez na vida o chileno Rodrigo Salinas, professor de inglês de 44 anos, inscreveu-se no IFE (sigla em espanhol de Renda Familiar Emergencial), programa governamental por meio do qual uma família de quatro pessoas, como a dele, recebe 620 dólares por mês. A soma está longe dos 1.800 dólares que ele ganhava em 2019, mas sua renda caiu a zero: não tinha um emprego estável e havia gasto os três saques autorizados de seu fundo previdenciário.

No ano passado, sua esposa, que trabalha com vendas, foi suspensa por seis meses antes de seu contrato ser cancelado. Durante esse período, ela própria pagava seu salário com seguro-desemprego. O casal também aproveitou a regra que postergou o pagamento da parcela do empréstimo hipotecário de sua casa. Ela conseguiu um emprego com salário menor, e ele faz corridas com o app de transporte DiDi (semelhante ao Uber). Agora temem pelo futuro. A ajuda financeira está prestes a terminar.

Em contraste, durante a pandemia alguns receberam o impulso de que precisavam para decolar. Na Argentina, o professor de economia Pedro Dhers e sua esposa, Mechi, ficaram surpresos ao ver como as pessoas solicitavam os serviços da empresa de decoração de interiores que ela havia fundado quando foi demitida, em 2019. A pandemia chegou quando a empresa tinha seis ou sete meses de experimentação e estavam apenas conhecendo os clientes. “Em março de 2020 estávamos incertos sobre o que iria acontecer e, ao contrário do que imaginávamos pelo ambiente de desemprego, empresas fechadas, baixo consumo, começamos a nos dar bem”, conta a professora. “Como todos estavam em casa, muitos começaram a dizer ‘OK, vai ser o meu local de trabalho e de vida sabe-se lá quanto tempo’ e resolveram fazer mudanças.”

Num setor diferente, mas muito afetado, como o turismo e o entretenimento, a ajuda também veio da população. O Zaperoco, conhecido em Cali, na Colômbia, como o templo da salsa, se sustentou por pouco mais de um ano sem receber clientes ou ajuda governamental, apenas com contribuições de seus seguidores e a vendas de camisetas e instrumentos musicais. Mas, em 8 de abril de 2021, o local que viu nascer o famoso Grupo Niche e a Orquestra Guayacán não aguentou mais e fechou suas portas após 27 anos de funcionamento. Três meses depois, reabriu graças ao “dízimo” dos fiéis da salsa.

As estatísticas mostram que, entre as milhares de pessoas que se viram na corda bamba em matéria de trabalho, as mais impactadas são as mulheres: a empregabilidade feminina caiu em mais de uma década, segundo a Organização das Nações Unidas. Além disso, 15,4% delas deixaram o mercado de trabalho, contra 11,8% dos homens, segundo o relatório Panorama Social da América Latina 2020 da Cepal.

Macarena Castañeda tornou-se mãe em janeiro de 2020, antes do primeiro registro oficial de um caso de Covid no Chile. Ela se viu obrigada a voltar para a casa dos pais, junto com seu companheiro, pois ambos perderam o emprego em meio à pandemia. Passou a fase de restrição amamentando, enquanto frequentava aulas de pós-graduação. Procurou empregos esporádicos, mas teve que recorrer às economias da aposentadoria para se sustentar: “Tudo serviu para pagar dívidas e cobrir as despesas da menina”, diz. Hoje, depois de passar pelas duas ondas de Covid com sua família, ela se prepara para se mudar, com seu companheiro, para a casa da sogra, já que o confinamento e a crise complicaram a convivência com seus pais e não têm mais condições de ser independentes .

Pior do que perder o emprego é a sobrecarga de trabalho trazida pelo confinamento. A sociedade normalizou que os homens são provedores e que sua área de atuação é externa, enquanto as mulheres ficariam restritas ao âmbito privado e ao cuidado dos filhos e idosos. Esse trabalho árduo não é remunerado e os obriga a trabalhar dobrado mesmo sem apoio. “Ser enfermeira não é a mesma coisa que ser praticamente professora de pré-escola. Foi uma mudança muito brusca”, relata Nélida Leiva, uma enfermeira venezuelana que passou a ter de fazer a lição de casa com as filhas ao retornar do plantão de 24 horas no hospital. Leiva, no entanto, considera que, embora o homem seja a parte mais forte da casa, “a mulher é quem constrói o lar”, e que, portanto, como cabe a ela manter a ordem, tem que trabalhar mais.

A situação também é mais dramática porque a pandemia obrigou as mulheres a ficarem em suas casas e as expôs a níveis mais elevados de violência de gênero, que às vezes terminam em feminicídios. De acordo com o relatório das Nações Unidas de 2020 “O impacto da COVID-19 nas mulheres e meninas”, os ataques contra elas cresceram 25% em países que fazem registros — alguns nem mesmo separam a violência contra a mulher de outros tipos e misturam esses dados com os de brigas ou acidentes de trânsito. Além disso, as autoridades muitas vezes subestimam as denúncias, como aconteceu com uma instrutora paraguaia de zumba, alvo do ciúme e de reclamações de seu companheiro, que culminaram em abusos físicos e psicológicos. “Ah, violência psicológica, só isso”, responderam quando ela foi registrar queixa. Como se não bastasse, quando se separou, perdeu a guarda dos filhos menores, que a pressionam para voltar ao agressor.

As mulheres, é claro, não são as únicas acuadas por viver 24 horas com as mesmas pessoas, pela falta de contato com amigos ou companheiros ou pela incerteza quanto ao futuro. Sem distinção de sexo ou idade, as perdas econômicas, as alterações nas rotinas e a solidão provocaram um forte dano na saúde mental e física que ainda não foi calculado. Alguns de seus efeitos só serão conhecidos nos próximos anos, quando apareceram as consequências do estresse e da ansiedade, que em alguns casos levaram a depressões profundas, como a que Clara Scalise experimentou em Buenos Aires, na Argentina. “Eu ficava estirada na minha cama, dormia o dia todo. Fui de comer de tudo a não conseguir comer. Chorava sem parar e sem motivo”, conta. Depois de um tratamento com antidepressivos, aos poucos retomou a vida social, mas admite que ainda tem dificuldade de se relacionar com as pessoas.

Para outros, a consequência da Covid chegou na forma de interrupções de tratamentos médicos, no adiamento de cirurgias necessárias, ainda que não vitais, ou na redução de doses de medicamentos por causa das dificuldades de encontrá-los ou pagar por eles. Para tentar reduzir os danos, a telemedicina surgiu como uma alternativa, mas não convence muitos pacientes e médicos, já que um atedimento remoto não tem como substituir a presença física.

“Foi um calvário ter câncer em plena pandemia”, relata a paraguaia María Estela Galeano, ao recordar que, como o hospital onde se tratava passou a atender somente a pacientes com Covid, ela tinha que ir a um lugar para fazer os exames e a outro para se submeter à quimioterapia. “Nisso, o coronavírus me pegou. Foi leve e consegui superar”, acrescenta. Muitos outros doentes nem mesmo foram atendidos. “Agora estão com metástases porque interromperam o tratamento. Por isso os médicos dizem que o tratamento do câncer deve ser pontual e certeiro”, resume a mulher, diagnosticada com câncer de mama há três anos.

Os primeiros relatórios de organismos multilaterais especializados indicam que levará décadas para que os países da América Latina e do Caribe voltem a apresentar os níveis de emprego e consumo que foram pulverizados pela Covid. Parte do sucesso dependerá da rapidez e eficiência dos programas de vacinação, cujos resultados são muito diferentes. No relatório “The gradual rise and rapid decline of the middle class of Latin America and the Caribeean”, publicado em maio de 2021, o Banco Mundial destaca que um dos maiores desafios é garantir a disponibilidade de vacinas e convencer a população relutante a ser vacinada.

Humberto Castillo Martell, diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental do Peru, resume assim as experiências da classe média na pandemia: “As pessoas que tinham um bom padrão de vida foram repentinamente afetadas por essas grandes perdas de empregos, de pessoas queridas, pelo confinamento e pela solidão. Nesse processo, muito sofrimento é gerado porque é preciso se adaptar novamente, para recuperar sua segurança, o que certamente é difícil”.

A recuperação já está em andamento. Os piores dias começam a ficar para trás, as economias estão se abrindo cada vez mais e o emprego se recupera. Mas as feridas estão apenas começando a fechar. Há um longo caminho a ser percorrido até que sejam curadas e parem de doer.

Veja o especial completo Cicatrizes da Pandemia neste link.

Cicatrizes da Pandemia é um trabalho promovido pela aliança editorial entre SembraMedia e ARCO no âmbito do programa Velocidad. Teve o apoio de ICFJ e Luminate e foi realizado por Ciper, El Pitazo, El Surti, Red / Acción, Ponte Jornalismo, Posta e CONNECTAS.

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