Foto: Agência Brasil/EBC
Há exatos 90 anos foi criada a carteira profissional, pelo Decreto N. 21.175, de 21 março de 1932, alterada para Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), pelo Decreto-lei N. 926, de 10 de outubro de 1969.
Desde então, a carteira profissional/CTPS transformou-se, por assim dizer, no passaporte para a cidadania. Seu simbolismo pode ser aquilatado pelo disposto no Art. 22 do decreto que a criou:
“Após doze meses de vigência do presente decreto, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio só tomará conhecimento das queixas e reclamações dos empregados que possuírem carteiras profissionais”.
Não obstante o Art. 7º da Constituição Federal (CF) não fazer qualquer referência à CTPS e/ou vincular qualquer um dos 34 direitos fundamentais que assegura — seguro-desemprego, FGTS, 13º salário, férias, jornada de 8 horas, aviso prévio etc. — à sua existência e à anotação nela do contrato de trabalho para deles usufruir, quem não a apresenta, com cumprimento dessa formalidade, não consta da relação anual de informações sociais (Rais) e do cadastro-geral de empregados e desempregados (Caged) — substituídos pelo E-social. De igual modo, fica alijado de todos os mencionados direitos constitucionais.
Assim o é pelo falso pressuposto de que, se a CTPS não foi anotada, não há vínculo empregatício, mesmo que patente a relação de trabalho. Isso não obstante a última Pnad contínua registrar, em fevereiro de 2022, 12,3 milhões de trabalhadores/as com vínculo formal, mas sem CTPS assinada.
Em casos que tais, para obter acesso aos destacados direitos constitucionais, o/a trabalhador/a tem de, primeiro, comprovar a existência do vínculo empregatício, só os conseguindo se e quando a Justiça do Trabalho reconhecer-lhe a condição de empregado/a.
Se se fizer o cotejo entre esse quadro fático, aceito e chancelado pela Justiça do Trabalho com o Decreto N. 4.682, de 24 de janeiro de 1923, conhecido como Lei Eloy Chaves, que criou a previdência social, de plano ter-se-á a nítida sensação de que, nesse quesito, o Brasil caminhou à marcha ré, posto que a lei que veio ao mundo jurídico há 99 anos é mais protetiva.
Veja-se o que estabeleciam seus Arts. 1º e 2º, com redação original:
“Art. 1º Fica creada em cada uma das emprezas de estradas de ferro existentes no paiz uma caixa de aposentadoria e pensões para os respectivos empregados.
Art. 2º São considerados empregados, para os fins da presente lei, não só os que prestarem os seus serviços mediante ordenado mensal, como os operarios diaristas, de qualquer natureza, que executem serviço de caracter permanente.
Paragrapho unico. Consideram-se empregados ou operarios permanentes os que tenham mais de seis mezes de serviços continuos em uma mesma empreza”.
O acelerado processo de desproteção do/a trabalhador/a e de seus direitos, com a de/reforma trabalhista de 2017 — Lei N. 13.429, da terceirização sem limites e freios, e Lei N. 13.467, reescrita da CLT para convertê-la de proteção do trabalho em proteção do capital — pôs no limbo a CTPS e todos os direitos trabalhistas.
Vale lembrar que a de/reforma foi festejada por Temer, seu principal artífice, e pela ministra do TST e presidente dessa corte de 2020 a 2022, Maria Cristina Peduzzi.
O ex-presidente Temer, em recente evento promovido pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA), com o cinismo que lhe é peculiar, afirmou, sem nenhum pejo:
“A modernização trabalhista não eliminou nenhum direito do trabalhador porque ela foi feita por lei ordinária. Nós mantemos os direitos e, inclusive, demos direitos importantes. Demos previsão do teletrabalho, trabalho intermitente, terceirização. De vez em quando, eu vejo gente desavisada dizendo que vai revogar reforma porque tirou direitos. Pelo contrário, revogando a reforma trabalhista que vai tirar direitos.”
A ministra do TST Maria Cristina Peduzzi, apologista de primeira hora da de/reforma trabalhista, em entrevista ao portal Jota, publicada em 30 de novembro de 2021, dentre outras pérolas, bradou:
“Até acho engraçado quando falam que a reforma não trouxe emprego porque a geração de emprego depende de múltiplos fatores. Em 2008, tivemos uma grande crise econômica no mundo. Os países europeus produziram reformas nas suas legislações, sobretudo focando em dois aspectos: flexibilização da jornada de trabalho e facilitação nas admissões e rescisões dos contratos de trabalho, para enfrentar uma crise econômica. O Brasil, depois dessas reformas que se produziram nesses países, aprovou a sua reforma trabalhista. Então, não é uma novidade.
Não me ocorre nenhum aspecto negativo. Acho que a reforma trabalhista, como outras leis que vieram, acompanharam as necessidades da revolução tecnológica 4.0.
Não tínhamos aqui estabilidade legal, mas a reforma deixou clara a flexibilização das jornadas, que está envolvida com a questão do alcance da negociação coletiva.
A reforma disciplinou institutos que passaram a existir na nossa prática diária de trabalho, disciplinou o teletrabalho, o trabalho intermitente, trouxe para o bojo de uma relação de emprego relações que antes se produziam na informalidade.
O trabalho autônomo já existia, porque a disciplina está no Código Civil desde sempre, mas veio para o bojo da CLT a disciplina do trabalho autônomo porque, hoje, temos a contratação por meio das plataformas digitais, temos uma prestação de serviços que não é, necessariamente, derivada de uma relação de emprego porque é uma forma nova de arregimentar trabalho por meio de plataformas digitais e de aplicativos com o auxílio dos algoritmos”.
Para além de formalizar a categoria de trabalhadores/as sem nenhum dos direitos assegurados pelo Art. 7º, a de/reforma criou as seguintes “novas” categorias de trabalhadores/as:
I Trabalhador/a de aluguel (Lei N. 13429/2017:
“Art. 1º As relações de trabalho na empresa de trabalho temporário, na empresa de prestação de serviços e nas respectivas tomadoras de serviço e contratante regem-se por esta Lei.” (NR)
“Art. 2º Trabalho temporário é aquele prestado por pessoa física contratada por uma empresa de trabalho temporário que a coloca à disposição de uma empresa tomadora de serviços, para atender à necessidade de substituição transitória de pessoal permanente ou à demanda complementar de serviços.
[…]
2º Considera-se complementar a demanda de serviços que seja oriunda de fatores imprevisíveis ou, quando decorrente de fatores previsíveis, tenha natureza intermitente, periódica ou sazonal.” (NR)
“Art. 4º Empresa de trabalho temporário é a pessoa jurídica, devidamente registrada no Ministério do Trabalho, responsável pela colocação de trabalhadores à disposição de outras empresas temporariamente.” (NR)
“Art. 5º Empresa tomadora de serviços é a pessoa jurídica ou entidade a ela equiparada que celebra contrato de prestação de trabalho temporário com a empresa definida no art. 4º desta Lei.” (NR)
II Trabalhador/a autônomo exclusivo, sem nenhum direito trabalhista:
“Art. 442-B. A contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3º desta Consolidação.”
III Trabalhador/a de segunda classe, que é o/a terceirizado/a, alijado de sua categoria profissional e com direitos inferiores aos/às das tomadoras, referendados pelo STF (recursos extraordinários 858252 e 635546):
Ao dar foro de constitucionalidade à terceirização, o STF assim fixou seu entendimento, com repercussão geral, nos recursos extraordinários 958252 e 635546, respectivamente:
“É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.
“4. […] a exigência de equiparação, por via transversa, inviabiliza a terceirização para fins de redução de custos, esvaziando o instituto.
A equiparação de remuneração entre empregados da empresa tomadora de serviços e empregados da empresa contratada (terceirizada) fere o princípio da livre iniciativa, por se tratar de agentes econômicos distintos, que não podem estar sujeitos a decisões empresariais que não são suas”.
É de se observar que a decisão do STF, proferida no RE 635546, afastando o direito à isonomia entre o trabalhador/a direto/a e o/a terceirizado/a, além de alijar este/a de sua categoria profissional, empurrando-o/a para o limbo, ou seja, sem categoria, fere de morte a pacífica jurisprudência do TST sobre este tema tão caro ao mundo do trabalho, revelando o real motivo da terceirização, que é a redução de custos, leia-se redução de direito, como expressamente declara o ministro Roberto Barroso, redator do acórdão retrocitado.
“AGRAVO REGIMENTAL. ENQUADRAMENTO SINDICAL. FINANCIÁRIA. SÚMULA 55 DO TST. Acórdão embargado que endossa enquadramento sindical de financiária e aplicação das respectivas normas coletivas por configurada a terceirização ilícita não contraria a Súmula 55 do TST, que trata de matéria distinta, qual seja, a equiparação a bancário de empregados de empresas de crédito (financeiras) que prestam serviços típicos de empresas de crédito, financiamento ou investimento, apenas para efeito de jornada de trabalho. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgR-E-ED–RR – 18100-16.2010.5.17.0014 , Relator Ministro: Márcio Eurico Vitral Amaro, Data de Julgamento: 05/10/2017, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DEJT 13/10/2017)”.
IV Trabalhador/a abduzido/a, que é aquele/a arrancado/a de sua condição de pessoa física e ficticiamente convertido/a em pessoa jurídica (pejota), com o único mau propósito de o/a afastar dos direitos trabalhistas:
O STF elasteceu o conceito de terceirização, para criar a subclasse de trabalhador/a “pejotizado/a”, como se colhe da decisão proferida na reclamação 47843, com a seguinte ementa:
“Ementa: CONSTITUCIONAL, TRABALHISTA E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NA RECLAMAÇÃO. OFENSA AO QUE DECIDIDO POR ESTE TRIBUNAL NO JULGAMENTO DA ADPF 324 E DO TEMA 725 DA REPERCUSSÃO GERAL. RECURSO PROVIDO. 1. A controvérsia, nestes autos, é comum tanto ao decidido no julgamento da ADPF 324 (Rel. Min. ROBERTO BARROSO), quanto ao objeto de análise do Tema 725 (RE 958.252, Rel. Min. LUIZ FUX), em que esta CORTE fixou tese no sentido de que: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante” . 2. A Primeira Turma já decidiu, em caso análogo, ser lícita a terceirização por “pejotização”, não havendo falar em irregularidade na contratação de pessoa jurídica formada por profissionais liberais para prestar serviços terceirizados na atividade-fim da contratante (Rcl 39.351 AgR; Rel. Min. ROSA WEBER, Red. p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 11/5/2020). 3. Recurso de Agravo ao qual se dá provimento”.
V Trabalhador/a com CTPS assinada, mas sem direitos, desde que tenha diploma de curso superior e receba mais que duas vezes o teto do regime geral de previdência social, no valor de R$ 7.087,22, em 2022 (ou trabalhador/as impropriamente chamado/a de hipersuficiente pelo Art. 444, Parágrafo único, da CLT):
“Art. 444. […]
Parágrafo único. A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que receba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.” (NR)
VI Trabalhador/a com CTPS assinada, sem direito a seguro-desemprego, formalmente empregado, mas, na prática desempregado (ou seja, os/as intermitentes, que só ganham por hora, se e quando trabalharem, segundo o Art. 452-A):
“Art. 452-A. O contrato de trabalho intermitente deve ser celebrado por escrito e deve conter especificamente o valor da hora de trabalho, que não pode ser inferior ao valor horário do salário mínimo ou àquele devido aos demais empregados do estabelecimento que exerçam a mesma função em contrato intermitente ou não.”
Não obstante a emergência patentear-se, com força, em todas as dimensões das relações de trabalho, notadamente em tempos sombrios como os de agora, que deliberadamente marcham para o retrocesso social nunca dantes enfrentado, as prioridades máximas, com a devida licença linguística, dos/as trabalhadores/as e de suas entidades sindicais é a de romper o falso véu que separa quem tem CTPS de que não tem, seja como autônomo, pejota ou qualquer outra máscara, quanto aos direitos fundamentais sociais. Bem assim, de resgatar o enquadramento sindical e a isonomia entre terceirizados/as e contratados/as diretos/as pela empresa tomadora.
Destarte, a prioridade das prioridades, metaforicamente falando, é garantir a todos/as, não importando a nomenclatura que se dê às relações de trabalho, igual acesso aos 34 direitos fundamentais sociais insertos no Art. 7º da CF.
A hora é agora!
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee