O dia 13 de maio é lembrado, no Brasil, como a data em que, do ponto de vista jurídico, a escravidão de trabalhadores negros foi abolida no país. Ainda assim, a Lei Áurea libertava esses trabalhadores de seus cativeiros, mas não planejava a inserção deles no universo laboral brasileiro. Foram mais de trezentos de escravidão e ao fim disso o Estado lançou os trabalhadores negros, liberados da escravidão, à própria sorte. A uma sorte atroz em um país formado em bases puramente racistas e intolerantes.
O futuro de um país torna-se preocupante quando seu passado foi construído baseado na sujeição de trabalhadores escravizados. Esse passado colonial nunca foi superado no contexto brasileiro. Muitas feridas ficaram abertas e isso foi inevitável. Criou-se, na sociedade brasileira, um flagrante racismo em seu cotidiano. As oportunidades entre brancos e negros não se tornaram igualitárias. E até hoje não são.
Muito foi e ainda é debatido sobre os mecanismos de exclusão racial no Brasil. Na década de 30 do século passado, o pensador social brasileiro, Gilberto Freyre, cunhou a expressão “democracia racial”, e com ela tentou classificar a realidade da relação entre os brancos e os negros, no Brasil, ao longo de sua formação social. Freyre afirmava, partindo da análise do processo de miscigenação ocorrida no país, que houve, desde sempre, uma democracia racial brasileira, considerando a mistura de raças ocorrida no território do país. No entanto, como afirmava outro pensador social brasileiro, Florestan Fernandes, de décadas posteriores a Freyre, deve-se entender que democracia implica diretamente em uma igualdade de direitos políticos, econômicos e sociais. Notoriamente, no Brasil, tal igualdade não existe e nunca existiu entre a população de brancos e a de negros, sendo que a essa última, antes e depois da abolição da escravatura, sempre restou opressão, violência e discriminação social. Válido ainda lembrar que nem sempre tal processo de miscigenação ocorreu de forma pacífica e igualitária, sendo que muitas mulheres negras escravizadas foram violentadas pelos seus senhores brancos. Logo, utilizar o fator de miscigenação ocorrida entre as duas raças para defender uma tese de democracia racial é completamente ilusório.
Outra marca que os três séculos de escravidão legaram ao Brasil é o modo como se vê, socialmente, até os dias atuais, o trabalho manual. No período escravagista, esse era realizado, majoritariamente, por trabalhadores escravizados. Trabalho manual era visto como função de escravo. Claro que nos dias atuais não se olha para o trabalho manual do mesmo modo, mas a essência cultural que restou não o coloca como meio valorizado no cotidiano profissional. A cultura brasileira foi construída, de certo modo, entre dois campos antagônicos: o bacharelismo dos brancos e o trabalho manual dos negros. Os primeiros, portanto, colocados como elite dominante letrada e os segundos como grupo desfavorecido de iletrados. Letramento aqui significa mais uma das formas em que se processou e se processa a injustiça social brasileira. A questão é que trabalho manual e ausência de escolaridade é uma associação elementar no cotidiano do país. E dentro da lógica de um passado colonial escravagista não superado, e de uma espécie de bacharelismo pautado em mentalidade elitista subdesenvolvida, essa modalidade de trabalho, a manual, é tida como algo indesejado e, consequentemente, desvalorizado e mal remunerado.
Finalmente, a própria ideia de escravizar trabalhadores não foi completamente superada no Brasil. Nos dias atuais, ainda existe o trabalho escravo sendo operado em diversas partes e de diversas formas no país, ainda que dentro da ilegalidade. No entanto, atualmente, a escravização de trabalhadores transcende a questão racial. Trabalhadores, de diversas partes do país e também imigrantes, como haitianos e bolivianos, acabam sendo vitimas da exploração do trabalho escravo. Acabam sendo enganados, conduzidos para locais distantes de suas casas e famílias, onde a fiscalização das autoridades legais é pouca, e ali, sob alegação de dívidas que não existem, acabam sendo submetidos a tratamentos cruéis e degradantes semelhantes aos que vivenciaram os trabalhadores negros durante o período escravocrata.
Quanto à sociedade brasileira atual, integrante de um país que aboliu a escravidão há mais de cem anos, ela olha para tudo isso com certo deslocamento de consciência. Os pronomes pessoais da primeira pessoa são pouco atuantes ao se elaborar uma visão sobre tudo isso. Eu e nós pouco operam nessa visão. Sempre ele e eles. Eles escravizaram os negros. Eles escravizam trabalhadores atualmente. Eles discriminam trabalhadores manuais. Eles são racistas. E assim se forma a visão típica de nossa sociedade. Toda pautada nos pronomes de terceira pessoa. O que de fato seria decisivo a todos nós, brasileiros, é nos colocarmos como parte atuante dessa realidade. Eu e nós são os agentes genuínos da história. Se há um passado colonial não superado em nossa sociedade, todos nós somos culpados. O que eu faço para reverter a realidade? O que nós fazemos? Essa é a pergunta que realmente importa.
O Sinpro-Sorocaba deseja que todos nós possamos, juntos, transformarmos a história e superarmos definitivamente nosso passado colonial marcado por injustiças, como a escravização de trabalhadores e o racismo.
Fonte: Prof. Joel Della Pasqua